quinta-feira, maio 07, 2009

DIFERENÇAS

Quando as nações da Terra foram criadas, uma após a outra, Deus concedeu para cada uma uma palavra es- pecial, a palavra que cada uma delas deveria procla- mar ao mundo, a palavra especial do Eterno que ca- da uma deveria falar.

Quando contemplamos a história das nações, pode- mos ouvir esta palavra da boca coletiva do povo, pro- nunciada como ação, como a contribuição daquela nação à humanidade perfeita e ideal. A palavra dada ao antigo Egito foi Religião; para a Pérsia a palavra foi Pureza; para a Caldéia a palavra foi Ciência; para a Grécia, Beleza; para Roma, Lei; e para a Índia, a primogênita dentre as Suas filhas, para ela Deus concedeu uma palavra que resumia todas em uma só: a palavra DHARMA. Esta é a palavra da Índia para o mundo.

Mas não podemos falar esta palavra, tão cheia de signifi- cado, tão vasta no alcance de sua força, sem nos curvar- mos diante daquele que foi a maior encarnação do Dharma que o mundo já conheceu: Bhîshma, o filho de Gangâ, a mais grandiosa encarnação do Dever. Venham comigo, viajemos para o passado, para cinco mil anos atrás, e veremos este herói estendido em seu leito de flechas no campo de Kuruk- shetra, mantendo a Morte em suspenso até que soasse a hora devida.

Passamos por montes e montes de guerreiros mortos, sobre montanhas de elefantes e cavalos mortos, e passamos por muitas piras funerárias, por muitos montes de armas e car- ruagens quebradas. E chegamos ao herói deitando em seu leito de flechas, atravessado por centenas de setas, com sua cabeça recostada sobre um travesseiro feito delas. Ele jogara longe o travesseiro que lhe haviam trazido para que repousasse suavemente, e aceitou somente o encosto de flechas oferecido por Arjuna.

Ele, perfeito no Dharma, havia, ainda jovem, em nome de seu pai, em nome do dever para com seu pai, em nome do a- mor que sentia por seu pai, feito aquele grande voto de re- núncia da vida familiar, renunciando à coroa, a fim de que a vontade do pai pudesse ser cumprida, e o coração do pai, satisfeito. E Shantanu lhe deu sua bênção, aquele dom mara- vilhoso de que a Morte só poderia se aproximar dele por seu próprio comando, só quando ele mesmo desejasse morrer.

Quando ele caiu, cravejado por centenas de flechas, o sol estava se dirigindo para o sul, e por isso o momento não era favorável à morte de um ser que não haveria de retornar jamais. Então ele usou o poder que seu pai lhe dera, e fez a Morte esperar até que o sol abrisse caminho à paz e liberta- ção eternas.

Enquanto lá ficou estendido por muitos dias miseráveis, ator- mentado pela agonia do corpo despedaçado que usara, che- garam até ele muitos Rishis [Santos] e os descendentes dos reis Arianos, e ali chegou também Shri Krishna, para ver seu fiel.

Também chegaram os cinco príncipes, os filhos de Pându, vitoriosos na grande guerra, e rodearam-no a chorá-lo e hon- rá-lo, e desejando ser ensinados por ele. E em meio àquela penosa agonia, Aquele cuja boca era a boca de Deus disse-lhe algumas palavras, e liberou-o da febre escaldante, e concedeu-lhe repouso corpóreo, e clareza mental, e tranqüi- lidade ao homem interno, e então instou-o que ele ensinasse ao mundo o que é Dharma - ele cuja vida inteira o havia ensinado, que não havia se desviado da senda da retidão, aquele que como filho, como príncipe, como estadista, como guerreiro, jamais se havia desviado do caminho estreito. Os que estavam ao seu redor pediram-lhe que ensinasse, e Vâsudeva lhe solicitou que falasse do Dharma, porque ele era capacitado para ensinar (Mâhâbharata, Shanti Parva, § LIV).

E então se aproximaram os filhos de Pându, liderados pelo primogênito Yudhishthira, que liderara o exército que havia conduzido Bîshma à morte; e aquele hesitou em aproximar-se e fazer-lhe perguntas, pensando que aquelas flechas eram de fato suas, que ele havia sido atingido por sua causa, e era culpado do sangue de seu parente mais velho, e por isso não devia pedir para ser ensinado.

Percebendo sua hesitação, Bhîshma, cuja mente sempre fora equilibrada, que havia trilhado a difícil senda do dever sem se desviar seja para a direita seja para a esquerda, falou as memoráveis palavras: "Assim como o dever dos Brâhmanes consiste na prática da caridade, do estudo e da penitência, da mesma forma o dever dos Kshattriyas é oferecer seus corpos no campo de batalha. Um Kshattriya deve matar senhores e potentados e irmãos e preceptores e parentes e familiares que possam estar engajados com ele em uma luta injusta. Este é o seu dever declarado. Diz-se que cumpre o seu dever aquele Kshattriya, oh Kesava, que mata em batalha seus próprios preceptores, se ocorre de serem pecadores e ambiciosos e desconsiderarem seus deveres e votos... Pergunta, pois, meu filho, sem receio".

Então, assim como Vâsudeva, falando de Bhîshma, havia explicitado o direito de Bîshma de falar como professor, da mesma forma o próprio Bîshma, por sua vez, dirigindo-se aos príncipes, descreveu as qualidades que eram necessárias para aqueles que fariam perguntas sobre o problema do Dharma:

"Que o filho de Pându, em quem há inteligência, autocon- trole, brahmacharya [castidade], perdão, retidão, vigor e energia mentais, faça-me as perguntas. Que o filho de Pându, que por seus bons serviços sempre honra seus parentes e hóspedes e servos e outros que dependem dele, faça a mim as perguntas. Que o filho de Pându, em quem existem caridade e penitência, heroísmo, ânimo pacífico, sagacidade e destemor, faça-me as perguntas" (Ibid. § LIV). Estas são algumas das características do homem que pode procurar entender os mistérios do Dharma. Tais são as qualidades que vocês e eu devemos tentar desenvolver, se havemos de entender os ensinamentos, se havemos de ser dignos de perguntar.

Então começou aquele maravilhoso discurso, sem paralelo entre os discursos do mundo. Ele trata dos deveres dos Reis e dos súditos, dos deveres das quatro castas, dos quatro modos de vida, dos deveres para todos os tipos de pessoas, deveres diferentes entre si e adequados a cada estágio da evolução. Todos vocês deveriam conhecer este grande discurso, deveriam estudá-lo, não só por sua beleza literária, mas por sua grandeza moral. Se fôssemos seguir o caminho traçado por Bishma nossa evolução se apressaria, então se aproximaria a aurora do dia da redenção da Índia.

A respeito da moralidade - um assunto intimamente ligado ao Dharma, e que não pode ser entendido sem um conhecimento do que significa Dharma - alguns pensam que ela é uma coisa simples. Assim é, em linhas gerais. Os limites do certo e errado nas ações comuns da vida são claros, simples e definidos. Para uma pessoa de pouco desenvolvimento, para uma pessoa de inteligência estreita, para uma pessoa de conhecimento limitado, a moralidade parece bastante simples. Mas para aqueles que possuem profundo conhecimento e alta inteligência, para aqueles que estão se desenvolvendo em direção aos graus mais altos da humanidade, para aqueles que desejam entender seus mistérios, para estes a moralidade é coisa bem difícil: "A moralidade é coisa muito sutil", como disse o príncipe Yudhishthira quando estava lidando com o problema do casamento de Draupadi com os cinco filhos de Pându. E um maior que o príncipe havia falado também desta dificuldade; Shri Krishna, o Avâtar, em Seu discurso proferido no campo de Kurukshetra, falou sobre esta mesma questão a respeito da dificuldade da ação. Ele disse:

"O que é ação, o que é inação? Mesmo os sábios se confundem com isso. É preciso distinguir a ação, distinguir a ação ilegal, distinguir a inação; misteriosa é a senda da ação" (Bhagavad Gita, IV, 16-17)

Misteriosa é a senda da ação; misteriosa porque a moralidade não é, como pensa o ingênuo, a mesma para todos; porque ela varia com o Dharma do indivíduo. O que é certo para um, é errado para outro. E o que é errado para um é certo para outro. A moralidade é uma coisa individual, e depende do Dharma do homem que age, e não do que às vezes é chamado de "certo e errado absolutos". Não há nada de absoluto em um universo condicionado. E o certo e o errado são relativos, e devem ser julgados em relação ao indivíduo e aos seus deveres. Isso foi o que disse o maior dos Mestres a respeito do Dharma - e isso nos guiará neste complicado caminho - "Melhor cumprir nosso próprio Dharma, ainda que destituído de mérito, do que cumprir o Dharma alheio com perfeição. É melhor morrer no desempenho do próprio Dharma, pois o Dharma alheio é repleto de perigos" (Ibid. IV, 35). [continua]

BESANT, Annie. Dharma, São Paulo, Ed. Pensamento: 2000.

Um comentário:

Anônimo disse...

Esse texto é bem complicado, mas na parte onde fala sobre "moral de cada um", diferente para cada indivíduo: o que é certo para um é errado para outro e vice-versa. Essa é uma GRANDE VERDADE!!!
Namastê.
Mohana de Shiva