segunda-feira, julho 26, 2010

O guardião do umbral

O ser humano, em sua ânsia para encher de vida a vida das pessoas e a sua própria, nem sempre escolhe o melhor caminho para fazer as coisas acontecerem e acaba por “ultrapassar” as sinalizadas regras sociais e, até mesmo, as consagradas leis da vida, com as quais deveria estar sintonizado. Confundindo seus desejos com a sua natureza mais profunda, acaba se perdendo do caminho. Mas, mais cedo ou mais tarde, o refluxo do caminho, que tudo aproveita para nos conscientizar dos nossos desvios, nos força a iluminar as regiões sombrias de nosso ser. Essa visão da própria sombra é o que chamamos de Guardião do Umbral, ao qual pode desencadear forças poderosas, capazes de submeter a alma à escravidão de seus próprios desejos. Em outras palavras, o Guardião ativa um complexo de sentimentos, pensamentos, desejos e paixões, que em um sentido amplo e não necessariamente passional, pode assumir o controle de nosso ser, desviando-nos de nossas potencialidades divinas. A consciência tem que enfrentar a insurreição de sua própria sombra. A coragem, a determinação e a sintonização com Deus talvez nunca tenham sido tão requisitadas.

Entretanto o Guardião parece ter contornos mais definidos, como algo que se posta no portal do caminho, além do qual se estende a terra da verdade e da paz e confronta quem quer que ouse passar com aquela mesma pergunta que a Esfinge fez a quem indagava por seus mistérios: “Decifra-me ou te devoro”. É uma experiência que escapa completamente ao comum das pessoas - embora todos possamos concebê-la como a própria sombra - esta parece que se agiganta, ganha autonomia e exerce uma pressão capaz, até mesmo, de acabar com a vida da pessoa. Vários relatos parecem descrever um ataque externo, mas que de alguma forma foi gerado pela própria sombra.

Glyndon, personagem do livro Zanoni de Bulwer Lytton, candidato aos mistérios após um encontro mal sucedido com o Guardião recebe uma carta de Mejnour, seu iniciador, que lhe diz: “Infeliz! Toda a minha ciência é inútil para o temerário, para o homem sensual, para aquele que deseja possuir nossos segredos somente para polui-los com prazeres grosseiros e vícios egoístas. Como pereceram os impostores e feiticeiros dos tempos antigos por quererem penetrar nos mistérios que exigem purificação e não toleram depravações! Quiseram possuir a Pedra filosofal e morreram miseravelmente, pretenderam ter o elixir da imortalidade e baixaram ao sepulcro, envelhecidos prematuramente. As lendas contam que o inimigo os fez em pedaços. Sim, o inimigo que eram seus desejos impuros e seus propósitos criminosos”. Mais adiante na mesma carta: “Porém desobediente e profano! Inalou o elixir; atraiu a sua presença um cruel e infatigável inimigo. Você mesmo há de exorcizar o fantasma que evocou. Há de voltar ao mundo, porém, não sem sofrer um castigo, e somente fazendo grandes esforços, poderá recuperar a calma e a alegria da sua vida anterior”. [...]

Luz no Caminho, um dos clássicos do Ocultismo de todos os tempos diz: "Procura no coração a raiz do mal e arranca-a. Ela vive e dá frutos no coração do discípulo devotado, assim como no do homem voltado para o desejo. Só o forte pode matá-la. O fraco tem que esperar que ela cresça, frutifique e morra. Ela é uma planta que vive e cresce através dos tempos. Floresce quando o homem acumulou em si inúmeras existências. Aquele que pretende entrar para o caminho do poder deve arrancar essa coisa de seu coração."

E assim, prezado leitor, para que a alma possa construir o destino com suas próprias mãos, tem antes que enfrentar o Guardião do Umbral, sua sombra acumulada até o momento presente. Tem que transformar a dor em luz e utilizar toda a energia - que antes era dada ao vício, para a auto-realização. [Ricardo Massena]

Extraído do Jornal Oxigênio, edição de novembro de 2004.